Ira: Canto (conto by Lela Rago)




Estou cansada de quem sou, tudo que faço gira em torno da minha família que, por sua vez, faz tudo pela comunidade.

Somos seres unidos por um objetivo: evitar o extermínio de nossa raça a todo custo e isso não é correto, infelizmente só eu penso desta forma.

A única coisa que posso fazer sem interferência é nadar pela costa, acho fascinante observar as pessoas de todas as cores, tamanhos e formas exercendo suas atividades, pois nós somos todos iguais com cabelos longos e negros e a pele excessivamente branca.

— Oi!

Levo um susto quando um moço fala comigo, esta é a primeira vez que interajo com um ser humano. Desesperada, olho em volta e fujo, conversar não é uma opção.

— Espera, não queria assustá-la!

Em casa ralho comigo mesma, preciso ser mais cuidadosa, se acho errados os atos da minha comunidade como poderia me aproximar daquele ser fascinante e resolvo seguir com minha vida esquecendo daquela voz melodiosa puxando conversa comigo.

Posso ter tomado esta decisão, mas meus pensamentos não, vez por outra eles fazem com que ouça o “oi” em minha cabeça e me arrepie, estou enlouquecendo.

Em uma manhã, farta de pensar e pensar, nado até a costa tendo em mente que vou interagir com o rapaz se ele surgir. Viagem inútil, fiquei alí até a noite chegar e ele não apareceu.

Os deuses devem estar avisando que devo me afastar, só que é mais forte do que eu e não vou desistir, voltarei e voltarei até reencontrá-lo, dou um sorriso e vou para casa.

Dia após dia retornei e acabei tendo sucesso, quando ele me viu sorriu e deu seu “oi” caloroso.

— Pensei que nunca mais voltaria a vê-la.

Sorrio em resposta.

— Desculpa assustá-la da outra vez.

Nego com a cabeça, tentando tirar importância de quase ter morrido de pavor naquele dia.

— Qual o seu nome?

Olho em volta e aponto para o mar, ele entende errado e resolvo não corrigi-lo.

— Jura que seu nome é Água? — ele ri e afirma — O meu é Earth, terra em inglês, podemos dizer que nós dois cobrimos toda a extensão do planeta.

Não faço ideia do que ele está dizendo, contudo não quero chateá-lo e sorrio.

— Você é muda?

Nego com a cabeça.

— Tímida?

Volto a negar e penso melhor, dou de ombros e concordo.

— Tudo bem, seria mais fácil nos conhecer se pelo menos saísse do mar.

Arregalo meus olhos e nego, neste instante ouvimos um senhor gritando:

— Earth, venha, sua mãe disse que o jantar está pronto!

— Desculpa, Água, preciso ir, amanhã estarei aqui na mesma hora, se não tiver algo melhor a fazer venha me ver.

Sorrio e concordo, abano minha mão e nado para longe, vez ou outra olho para trás e ele faz o mesmo.

Nos próximos dias, nós nos encontramos para contar um pouco de si, confesso que fazer mímica é mais complicado do que pensava.

Em um desses encontros ele confessou que tem medo do mar e do que vive dentro dele, fiquei triste, pois o mar é minha vida, não tem como não amá-lo.

— Hoje faz nosso aniversário de um ano de nossos encontros e quero que saia daí, estou cansado de ficar no seco e você no molhado. — Earth afirma sério.

Dou um suspiro longo e resolvo mostrar quem sou pela primeira vez. Tenho a esperança que este tempo que nos conhecemos tenha sido o suficiente para que ele não tema quando me revelar.

Olho em volta e vejo algumas formações rochosas e indico estar indo até lá, desta forma posso sair do mar sem ser vista por olhos curiosos.

Quando Earth se aproxima, estou sentada fora da água esperando, ele me vê e fica tão branco quanto eu, a única diferença é que ele tem duas pernas e eu uma cauda.

— Você é uma sereia?

Dou de ombros.

— Uau, você é linda! Agora faz sentido o porquê de não falar comigo. Posso entender que é verdade que o canto das sereias são mortais para os seres humanos?

Concordo com tristeza.

— Sua voz é bonita sob as águas?

Dou de ombros, pois não sei, sereianos não se comunicam entre si pela voz, seria letal. Então faço o sinal indicando minha cabeça.

— Entendi, usam telepatia.

Sorrio em resposta e faço um ‘X’ com meus dedos sobre a boca negando veementemente.

— Espera, está insinuando que suas vozes são mortais para vocês também?

Faço sinal positivo com minha mão.

Earth senta ao meu lado e sem um pedido de permissão toca meus cabelos, pele e calda.

— É toda suave. — ele sussurra — Posso beijá-la?

Olho confusa para ele tentando entender, não sei o que é beijar, como estou corajosa hoje, concordo. Earth segura meu rosto com ambas as mãos e meu peito dispara, será que ele vai me matar? No mesmo instante ele cola nossos lábios e meu coração explode no peito, é a sensação mais deliciosa que senti.

A partir de hoje, o tal beijo está acima do meu amor pelo mar, mas abaixo do que sinto por Earth.

— Quero viver com você, minha vida aqui é chata, só vejo significado quando estou ao seu lado.

Nego e começo a chorar.

— Você não me quer? — ele pergunta aborrecido.

Toco seu rosto e indico que o amo apontando meu coração.

— Se eu descobrisse um meio de viver no mar ou de você viver na terra, aceitaria?

Balanço a cabeça com veemência e sorrio, ele devolve o sorriso, beija meus lábios e diz:

— Vou ler todos os livros sobre sereias e tentar encontrar uma solução para nosso pequeno problema.

No próximo mês faço o mesmo, peço para nossos idosos contarem histórias sobre humanos e sereianos, um deles conta sobre uma lenda de que se todos os sereianos morressem pela voz de um de nós, este tornar-se-ia humano.

Confesso que me arrepiei toda, quem poderia exterminar nossa raça para viver na terra.

Eu e Earth perdemos as nossas esperanças de nos unir, pois não encontramos nenhuma solução viável para isso ocorrer.

Um dia, ele resolveu me acompanhar de barco até minha comunidade, adorei a ideia, assim ele poderia vir me ver como eu faço desde que nos conhecemos.

Para meu desespero, um grupo de sereianos estavam nadando na superfície e me elogiaram telepaticamente por ter trazido o jantar, é quando percebo o absurdo que fiz.

— O que houve? Não vai me apresentar a família? — Earth pergunta sorrindo.

Neste momento meus pares começam a cantar, Earth fica hipnotizado e cai no mar, com uma fúria incontrolável a única coisa que vem a minha cabeça é salvá-lo. Sob as águas, tapo seus ouvidos e grito “afastem-se” com toda potência dos meus pulmões e com todo ódio no meu coração, para minha surpresa os sereianos começam a sangrar por suas narinas e ouvidos, os olhos saltam das órbitas e explodem espalhando restos mortais de toda comunidade.

Os corpos são visíveis boiando sobre as ondas, alguns ainda se debatendo em uma esperança vã de salvação, outros inertes aguardando que a centelha de vida se esvaia e que suas almas sejam encaminhadas para o além.

Sem me preocupar, nado até o barco e arrasto Earth para dentro, ele começa a tossir e cuspir a água que quase o matou.

— Obrigado por me salvar.

Sorrio e acaricio seu rosto, começo a convulsionar e a vomitar água, de quatro no chão do barco puxo o ar para dentro dos meus pulmões, o que está havendo comigo?

— Água, olha para você!

Sinto que voltei ao normal e sento, olho para minha cauda e ela sumiu, em seu lugar há um par de pernas e de pés, toco estes novos membros sorrindo, encaro Earth e arrisco falar.

— Meu nome é Kryybes e não Água.

Começamos a rir e ele me pega em seus braços, beija meus lábios e ama meu corpo. Mais tarde, ambos vestidos resolvemos voltar à terra, ao desembarcar ele faz uma pergunta que me deixa confusa.

— Onde vai viver já que deixou de ser uma sereia?

— Como assim? Vou viver com você.

— Está louca? — Earth pergunta gargalhando — Sou casado e não quero complicações de uma amante batendo em minha porta e destruindo o que construí com minha esposa.

— Mas você disse que morava com seus pais. — afirmo em desespero.

— Sim, eles e minha esposa. — ele responde.

— Eu matei toda minha espécie por você e em agradecimento diz que sou uma complicação em sua vida? — grito, voltando a sentir o ódio vagando pelo meu corpo.

Quando dou por mim, Earth está convulsionando no chão e há sangue saindo por todos os seus poros, sorrio quando ele cai morto empapado em seus fluídos, posso ter deixado de ser uma sereia, mas meu grito continua sendo letal.

Tomo rumo para minha nova vida logo depois de exterminar toda comunidade de Earth.



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