Faz dois meses que isso começou, pelo menos é o que imagino, há muito que perdi a noção de tempo, quando andava pela cidade ouvia, vez ou outra, em que dia estávamos, agora, confinada em meu colchão é impossível precisar.
Quando esta praga surgiu, a maioria das pessoas achava que era brincadeira, uma invenção da mídia para vender notícia, infelizmente, ela era real.
Hollywood nos fez acreditar que quando o fim do mundo chegasse seria um momento de tormento e desespero, ledo engano, na realidade é uma mansidão mais assustadora que o caos.
Moro na rua há anos e esta é a primeira vez que realmente faltou comida para mim, parece comédia, todos morrendo pela praga e eu pela fome, se Deus existisse e fosse piedoso ele acabaria com meu tormento.
No início disso tudo, passava as horas do dia caminhando pela cidade vazia fingindo que era meu palácio, um lugar seguro e só meu, até perceber que era meu calabouço, um lugar onde comeria minhas forças e destruiria minha esperança.
Tenho saudades da minha infância, de quando minha mãe me pegava em seus braços e dizia que tudo ficaria bem, existe coisa melhor que se sentir segura e amada?
Minha mãezinha não presenciou essa loucura silenciosa do fim, morreu faz anos de tanto beber. Algumas pessoas dizem que bêbados são agressivos, porque não conheceram minha mãe, ela era extremamente cuidadosa comigo, tão preocupada comigo que se esquecia de si mesma. Por que ela não vem me buscar logo? Seríamos uma família feliz novamente e teria seus braços, dessa vez, para sempre.
Estou tão debilitada que começo a delirar, enquanto pensava na mãe um homem forte se aproximou e começou a cuidar de mim, o que seria a primeira vez, minha experiência com o sexo oposto sempre foi trágica, motivo de estar morando na rua há tanto tempo, melhor morar ao relento que ser espancada dia após dia.
É bom sentir uma mão forte em você quando não está sendo agressiva, poderia me acostumar com isso muito fácil. Maldita tosse que acaba de voltar para fazer vomitar o que não há o que ser vomitado e ouço:
– Calma, vai ficar tudo bem!
Minha mãe está com a voz muito diferente e grossa, será que mudamos quando chegamos ao céu? Antônia, não seja ridícula, você não acredita em Deus, como ele vai levá-la ao céu?
– Assim que tivermos a autorização, vamos levá-la ao hospital.
Viu, nada de céu, hospital deve ser o nome correto de inferno, dou um suspiro satisfeito, pelo menos aquela tortura acabou céu ou inferno é melhor do que onde vivo. Tosse, dor no corpo, como posso sentir falta de ar se estou morta? Deus até no inferno meu tormento não acaba?
– Está alucinando, eles precisam liberá-la logo, senão será muito difícil pra ela. – ouço a mesma voz.
– Onde a encontrou?
– Caída na porta da igreja, está tão maltratada que não sei como resistiu por tanto tempo.
– As pessoas podem ser cruéis com sua própria espécie.
– Não precisa falar isso para mim.
O que está acontecendo? Mãe responde o que está acontecendo?
– Calma querida, vai ficar tudo bem!
Agora sim, se minha mãe falou confio nela e deixo o sono me dominar, nunca imaginei que quando morremos sentíamos sono e apago rindo de mim mesma.
Quando abro meus olhos vejo o homem mais lindo da minha de vida, alto e negro e com o sorriso mais brilhante que vi até hoje.
– Como se sente querida?
– Mãe?
Ele cai na risada acompanhado de outro cara.
– Acho que ela está notando toda sua delicadeza, Luís.
– Querida, nunca fiz exames para comprovar, mas acho que não tenho as partes necessárias para ser mãe.
– A não ser o pinto pequeno.
– Cala boca imbecil, estamos trabalhando!
– Desculpe, escapou.
– Quem são vocês? – sussurro.
– Eu sou Luís, o cara que encontrou você e este engraçadinho é meu irmão, Cássio.
– Irmão? Ele é branco… – digo confusa.
– Sim, ninguém é perfeito, não é? – Luís fala piscando e sorrindo para mim.
Nenhum cara sorriu assim para mim, tento retribuir sem ter muita certeza de sucesso, faz tanto tempo que não vejo graça na vida que acho que perdi a receita do riso.
– Ah, um sorriso, você é muito bonita com ele em seu rosto.
Então ainda sei fazê-lo.
– Onde estou? Céu ou inferno.
Os dois respondem junto, cada um com uma opinião.
– Céu. – afirma Luís.
– Inferno. – Cássio rindo.
– Irmão, para de sacanear.
– Para mim é um inferno tê-lo dia e noite ao meu lado. – Cássio responde rindo.
– Querida, brincadeiras à parte, estamos no hospital.
Começo a chorar, pois meu tormento não acabou, continuo viva e questiono:
– Por que não me deixaram morrer? Estou cansada de ficar sozinha, de passar fome, de ter medo…
Choro tanto que a maldita tosse volta e com ela a falta de ar.
– Calma vai fic….
– Mentira! – grito interrompendo sua frase – Você não pode usar as palavras da minha mãe para me enganar.
– Querida, qual seu nome?
– Antônia. – sussurro.
– Posso chamá-la de Tônia?
Dou de ombros.
– Tônia, o pior da sua doença passou e prometo que nunca mais vai passar fome ou medo em sua vida. Tenho meu irmão de prova, vou fazer o que for necessário para ajudá-la. Não a salvei para devolvê-la ao desespero.
– Luís, o que está fazendo? Não pode prometer uma coisa destas.
– Posso e vou. Vocês me tiraram de um lar de merda e deram o céu, é minha vez de mostrar que aprendi o significado de amor.
– Muito bem, o que quer que eu faça?
– Seu turno está acabando, traga algumas roupas, terei que liberar o leito dela em dois dias e vou levá-la comigo.
– Cara, você não pode, acredito que…
– Cássio, o problema é meu para enfrentar, faz o que pedi que é o suficiente.
– Não sou um problema… – sussurro interrompendo esta conversa estranha.
– Desculpa Tônia, usei mal as palavras, é que não tive muita sorte com pessoas morando comigo, mas sei que vamos acertar as coisas de forma tranquila.
– Não quero morar com você, também não tenho boas lembranças de dividir uma casa com um homem.
– Então estamos no mesmo barco, se nos esforçarmos, vai dar certo e serei capaz de guiá-la.
– Você é muito forte, não vou resistir. – afirmo e uma lágrima escorre ao pensar na surra que ele vai me dar.
– Não entendi? – ele questiona e troca um olhar com o irmão.
– Quando você me bater vai doer mais do que das outras vezes.
– Pai, tenha piedade! – Cássio exclama e passa as mãos pelos lábios.
– Tônia, nunca bati em homens muito menos em mulheres, sou uma pessoa pacífica. – Luís fala sério – Confesso que tive que me segurar para não encher a cara deste babaca aqui de porrada várias vezes, mas a dor que sentiria em meus punhos falaram mais alto. – ele termina sua afirmação rindo.
– Não conheci um homem que não gostasse de bater nas pessoas. – afirmo.
– Prazer, Antônia, sou Luís que é contra resolver as coisas na base do soco. – ele estende sua mão sorrindo.
Não sei se é brincadeira ou não, contudo entrego minha mão a ele com um sorriso sem graça.
– Solta a moça, palhaço, é minha vez, sou Cássio, também contra a violência. – ele fala rindo e pegando minha mão – Agora somos dois para melhorar sua estatística. – gargalha de si mesmo.
– Luís e Cássio, vocês são irmãos mesmo?
– Sim, querida, desde que fui resgatado de um lar abusivo quando tinha quatro anos. – Luís afirma com outro daqueles sorrisos.
– Fico feliz por você, quando era criança minha vida era perfeita, virou de cabeça para baixo quando minha mãe morreu. – dou de ombros.
– E vai voltar a ser perfeita se depender de mim.
– Era só o que faltava o clichê negão com a loira.
– Cala boca idiota e some daqui, deu sua hora.
Cássio abana a mão e sai do quarto gargalhando.
– O que é isso que ele falou?
– Clichê? – ele questiona e concordo – É que as pessoas costumam dizer que negros gostam de loiras.
– E é verdade?
– Em meu caso é a primeira vez. – ele responde e sai do quarto.
Meu coração dá um salto, impossível que tenha entendido correto, um homem como ele não poderia estar interessado em mim ou sim?
Sinto-me tão bem, Deus você existe mesmo e obrigada por me tirar daquela masmorra.
Durmo e acordo com minha mãe dizendo:
– Filhinha estava com saudade, que bom que você chegou!
Este conto foi escrito para você pensar que existem pessoas em estado pior que você,
então fica em casa e respeite a vida, se não a sua, mas a de outros.
Fiquem bem e #ficaemcasa #StopTheSpread
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