Trocas (conto by Lela Rago)




“Respeitável público, hoje tenho o prazer de trazer a vocês os maiores artistas da atualidade, eles os entreterão com suas habilidades e…”

–‌‌ Não devia estar se arrumando para o show?

–‌‌ O patrão diz que não sei fazer nada, comecei como ajudante do mágico, mas quando ele se casou com uma das trapezistas fui posta de lado e hoje faz suas apresentações com a esposa. Tentei com os palhaços, descobri que sou a pessoa mais sem graça da terra; trapézio não dá, pois tenho medo de altura; malabarismo impossível, tenho duas mãos esquerdas.

–‌‌ E encantadora de animais?

–‌‌ Amo animais, contudo eles são proibidos em circo.

–‌‌ Não se forem gatos.

Olho ao meu redor para ver quem teve esta ideia magnífica e estou sozinha, Deus enlouqueci.

–‌‌ O que procura?

Sigo a voz e olho para baixo, um gato amarelo com olhos tão amarelos quanto seus pelos está falando comigo, dou um pulo para trás, caio sentada e falo num sussurro:

–‌‌ Devo estar sonhando.

–‌‌ Não está e quero ajudá-la.

Neste instante o senhor Amarelo solta um miado profundo e sou rodeada por gatos de todas as cores e tamanhos, começo a tremer e o primeiro gato se aproxima, roça sua cabeça em mim e pula em meu colo dizendo:

–‌‌ Minha família precisa de um lar e você de um número para o espetáculo, o que acha da troca?

–‌‌ Confesso que não sei o que responder.

Um gato negro como a noite e com olhos alaranjados se aproxima e fala:

–‌‌ Estamos dispostos a fazer o que for necessário, minha companheira está prenha e não quero que meus bichanos nasçam ao relento como o restante de nós.

Os demais concordam e uma gata linda, peluda e colorida com olhos negros vem até mim roça sua cabeça em minhas pernas e encara o senhor Amarelo que sai de cima de mim para que ela tome seu lugar e deite enrolada em mim dizendo:

–‌‌ Garanto que meus filhotes vão encantar a todos quando nascerem e os ajudarei no que precisar para entrar em seu número.

–‌‌ Gente, quero dizer, gatos, confesso que estou assustada e extasiada, não sei em qual proporção, mas uma coisa tenho certeza, quero a ajuda de vocês e vamos elaborar um espetáculo memorável, em troca poderão morar em meu trailer e dormir em uma cama quentinha.

Com isso sou acariciada por vários gatos ronronando fazendo com que eu ria.

–‌‌ Parem estou com cócegas. Vamos ao nosso trailer, vou ver o que tenho para vocês comerem e amanhã cedo vou atrás de ração.

Ouço o senhor Amarelo avisar:

–‌‌ Quem descumprir a troca, morre.

Será que isso foi para mim também?

Nos próximos dias treinamos dentro do trailer pois queria fazer uma surpresa ao patrão, dividimos o grupo em dois de sete e deixamos a senhora Peluda descansar, cada um deles se mostrou hábil em uma coisa, saltos, equilíbrio sobre uma área circular, arremessar e defender bolas, formamos inclusive um pequeno time de futebol.

Duas semanas depois eu estava sendo vista de lado por quase não sair do meu trailer e pelos barulhos vindos de lá, fui ao refeitório falar com o patrão:

–‌‌ Tenho um número para mostrar, estaremos prontos logo depois do almoço.

–‌‌ Passou da hora, se não for bom você está fora, não vou sustentar uma preguiçosa por mais tempo.

Estas palavras me cortaram ao meio, mas não respondi, só virei e voltei ao meu canto, no trailer me pus a chorar e senhor Amarelo se aproximou perguntando:

–‌‌ O que houve, menina?

–‌‌ O patrão avisou que se não gostar do número vai me pôr para fora da família circense.

–‌‌ Ele vai gostar e em troca terá que dar o trailer dele a você, estamos muito apertados aqui.

–‌‌ Senhor Amarelo, ele é muito impiedoso, nunca cederia o conforto do maior trailer para nós.

–‌‌ Seremos sua melhor atração, mereceremos.

–‌‌ Certo, vou tentar.

Na hora marcada todos os artistas estão nas arquibancadas para me assistir, eu e meus gatos entramos e todos riem, começo a tremer e senhor Amarelo pula em meu colo.

–‌‌ Fique firme menina!

Concordo com a cabeça e falo alto para que todos ouçam:

–‌‌ Sou a Encantadora de Animais e vou fazer com que estes pequenos peludos façam tudo que eu quiser.

E assim foi, meus amigos circenses adoram o número e sou aplaudida em pé, exceto pelo patrão que afirma:

–‌‌ É razoável.

Amarelo olha para mim e erguendo minha cabeça respondo:

–‌‌ Fomos excelentes e quero seu trailer, o meu é muito pequeno para todos nós.

Todos se espantam e o patrão gargalha dizendo:

–‌‌ Está louca e amanhã à noite será seu primeiro show.

Não falamos mais sobre o trailer e a noite seguinte foi a de maior lucro para o circo em muitos anos e nos dias seguintes também. Em um mês, meus familiares circenses estavam me ovacionando por meu sucesso e por tirar o circo da lama, exceto o patrão que não via nada demais.

No dia do acerto mensal, recebi o mesmo de sempre, fiquei arrasada e os gatos revoltados, porém o senhor Amarelo não se manifestou.

Na manhã seguinte o patrão foi encontrado morto em uma estrada próxima com a garganta destroçada, moradores disseram que ele havia ido à cidade gastar os lucros do mês no bar. Ao ficar sabendo, olhei assustada ao senhor Amarelo que não se abalou e continuou limpando suas orelhas.

–‌‌ Agora você é a dona de tudo isso, o patrão era seu pai. –‌‌ o mágico afirma.

Surpreendo-me e espero sua explicação:

–‌‌ Sua mãe era uma trapezista que morreu muito cedo de um ataque no coração, você era um bebê por isso não se lembra, o patrão nos ameaçou colocar na rua se contássemos a verdade, tivemos medo e nos calamos.

Meus amigos gatos olham para mim, senhor Amarelo com mais intensidade, então levanto minha cabeça e aviso:

–‌‌ Estou me mudando para o trailer do meu pai e como tudo é meu, terão que me obedecer. Serão pagos com justiça, em troca quero muito trabalho e principalmente respeito a mim e a meus filhos felinos, quem descumprir a troca morre, estou certa senhor Amarelo?

Uma profusão de miados é ouvida e humanos assustados abaixam suas cabeças.



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