Sinistro (conto by Lela Rago)



Hoje foi um dia de merda, não consegui uma migalha para comer, vai ser difícil dormir com fome. Ajeito meus papelões e deito, meu vizinho grita:

– Ei moleque comeu alguma coisa hoje?

– Não, – dou de ombros – o dia foi fraco, quem sabe amanhã?

– Toma, tenho muito para mim.
– Em troca de que? – questiono.

– Em troca de não morrer de fome moleque. – ele responde bravo.

Corro e pego uma metade de lanche que ele estende para mim, uau, faz um tempão que não tenho um desses. Como lentamente para aproveitar bem, não tenho ideia de quando será minha próxima refeição, guardo um pouco para amanhã e volto a deitar, durmo na mesma hora.

Acordo assustado com um barulho alto, olho em volta e estou sozinho, meu vizinho deve ter ido para um abrigo, seria ótimo poder ir com ele, infelizmente corro o risco de voltar para minha casa e lá não volto nunca mais, cansei de apanhar.

Quando minha mãe era viva minha vida era boa, porém há alguns anos foi atropelada e a perdi, meu pai nunca foi grande coisa e era sustentado por ela, quando ficou sozinho para cuidar de mim e sustentar a casa virou um maldito batedor, vivia me acusando de tudo, como se eu fosse o culpado dela ter morrido em um acidente, grande idiota!

– Socorro, alguém me ajuda!

O grito chama minha atenção, guardo meu lanche no bolso e vou investigar, caralho, o barulho foi de um acidente de carro, corro até lá e vejo uma garotinha chorando.

– Oi, está machucada?

– Não, mas estou com muito medo, meu papai não responde! – ela choraminga.

– Espera, vou tentar chamá-lo.

Vou para o banco da frente e dou um cutucão no homem que nem se mexe, o pai da menina está imprensado no volante, seu braço deve estar quebrado, pois está em uma posição estranha.

Dou uma analisada na situação, por algum motivo o cara invadiu a calçada, bateu no muro e atropelou uma pessoa, que deve ter morrido, tem muito sangue lá.

Localizo um celular no piso do carro, pego e ligo para polícia pedindo ajuda, volto para onde a menina está e comunico:

– Avisei a polícia, fica tranquila.

– Ajuda eu sair daqui. – ela pede.

Não sei o que fazer, dizem que não se deve mexer em pessoas envolvidas em acidentes, dou uma olhada e percebo que ela está presa ao cinto e ilesa, resolvo correr o risco, não suporto ver gente chorando.

Arrasto-me entre as ferragens e pego um canivete que roubei do meu pai antes de fugir e corto o cinto, quando ela se vê livre, se arrasta para fora atrás de mim.

No asfalto ela se agarra a mim, percebo que está tremendo e a abraço.

– Ele morreu?

– Acho que não, deve estar desacordado, porém o braço está quebrado ele está meio torto, a menos que seja deficiente, ele é?

– Não.

– Como foi que isso aconteceu?

– Não sei, estava dormindo.

– Eu também, acordei com o barulho. Está com fome?

– Um pouco.

Pego meu restinho de lanche e dou a ela, que sorri e diz:

– É meu preferido.

Devolvo seu sorriso, esta menina é muito linda, tem um rostinho de anjo.

– Vamos sentar. – aponto a sarjeta.

– Quando a polícia vai chegar? – ela pergunta.

– Não faço ideia, onde está sua mãe?

– Meu pai disse que ela não gosta da gente e que vai formar outra família.

Quem abandonaria um anjo destes? Não é da minha conta, então fico quieto.

Algum tempo depois os policiais chegam com ambulâncias e o corpo de bombeiros, a rua está tão iluminada com as luzes girando sobre as viaturas que ficou parecendo Natal.

O pessoal acode o pai dela e nos ignora, devem ter percebido que ela está segura comigo e esperamos.

Os bombeiros pegam uma serra elétrica e começam a cortar a lataria do carro para retirar o teto. Nossa ficaria muito legal ter uma coisa assim para dormir nos dias de chuva, como sou idiota, como poderia ter algo tão grande e pesado, os caras estão em quatro e não está sendo fácil.

Puxa, não imaginava que era tão complicado ser bombeiro, depois de horas eles conseguem remover o teto do carro para acudir o pai da menina.

– Quero ficar com meu pai! – ela choraminga.

– Não, melhor não sair daqui, você pode acabar atrapalhando.

– Ah é, você vai ficar comigo?

– Claro, cuido de você até tudo se resolver.

Ela sorri e aponta, sigo sua indicação, os bombeiros estão tentando remover o carro para tirar a pessoa atropelada e falo:

– Minha mãe morreu assim, nem pude me despedir, pois estava muito machucada, tenho saudades dela.

– Que triste, acho que vou sentir falta da minha também.

Alguém grita que para tirar o carro será necessário um guincho, acho super maneiro aqueles caminhões, parece uma mãe com seu filho no colo, começo a rir.

– Do que está rindo?

– Você viu como os guinchos carregam os carros?

– Sim, um dia o carro do meu pai quebrou e um negócio destes veio levar a gente para a oficina.

– Então, parece mamãe e filhinho. – explico e volto a rir.

– Você é engraçado. – e ri comigo.

– Quer dizer que perdi meu lanche à toa?

– Que susto velho! – exclamo – Está enganado, comi e ainda dei um pedaço para minha amiguinha.

– Estava muito bom. – ela sorri e confirma com a cabeça.

– O que houve aqui?

– Meu pai bateu o carro e parece que atropelou uma pessoa.

– Entendo, e os dois estão assistindo de camarote o trabalho dos policiais e dos bombeiros.

– Sim. – respondemos ao mesmo tempo.

– Afastem-se, quero sentar onde estão, venham e se acomodem em meu colo, quero apreciar a bagunça também.

Fazemos como pediu, ele nos abraça e ficamos olhando os acontecimentos. Acredito que estou muito grande para ficar no colo de um homem, mas é tão gostoso e quentinho, acho que não vai ter problemas só desta vez.

– Ué, por que minha mãe está aqui? – a menina pergunta – Acho que ela não me viu, pois está me chamando. – começa a rir – Deve estar ficando cega.

– Vai falar com ela. – falo, nunca gostei de preocupar minha mãe.

– Não, vou esperar ela me ver e então corro para os seus braços, igual na televisão.

Neste instante o carro começa a ser removido e um pedaço de lanche rola para o meio fio da calçada, mas que porra? Fico em pé assustado e olho para o velho que está sorrindo para mim.

A mãe da menina está descontrolada e gritando com marido que chora enquanto é atendido por um paramédico.

– Está satisfeito com o que fez seu filho da puta? Eu o odeio mais agora do que antes.

– É, minha mãe não quer a gente mesmo, – a menina afirma – nunca a ouvi falar desse jeito com o pai.

– Senhora, – uma policial a interrompe – pode vir agora.

Nós três acompanhamos com o olhar a mãe da menina, que se ajoelha no asfalto ao lado do carro e agarra o corpo inerte da filha e chora compulsivamente. Neste momento a menina fica em pé ao meu lado e encara o velho, como fiz há pouco e recebe o mesmo sorriso que eu.

– Vamos. – o velho fala.

Ele se ergue, estende ambas as mãos para nós, voltamos analisar a cena do acidente e nos aproximamos dele, tomamos cada uma de suas mãos e seguimos para uma nova aventura em outro lugar, espero que seja melhor do que vivi até hoje…



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